A fome dói – resistência e solidariedade

Nota Técnica

A fome dói – resistência e solidariedade

Rafael Marques

Resumo Executivo

A pandemia do coronavírus agravou a situação de precarização que o Brasil vinha enfrentando desde a ruptura institucional e os retrocessos impostos à sociedade por meio de uma política conservadora que rompeu com as políticas sociais e empobreceu de forma sistemática os trabalhadores e trabalhadoras. A população foi deixada à própria sorte para buscar sua sobrevivência e todas as restrições impostas pela crise sanitária, sem uma contrapartida adequada, levaram as pessoas a conviver com a insegurança alimentar e com a fome. Com isso, pelo segundo ano consecutivo, centenas de ações solidárias se articulam para resistir aos retrocessos, arrecadar alimentos e matar a fome dos brasileiros e brasileiras.      

Palavras-chave: segurança alimentar, fome, solidariedade, políticas sociais, retrocessos, reforma trabalhista, inflação, comida, pobreza, pandemia, coronavírus, insegurança, resistência. 

Caminhando pelas ruas da cidade, me deparei com uma pessoa segurando um pedaço de papelão escrito: a fome dói. 

Um recente estudo intitulado “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil” apontou que 59,3% dos brasileiros ou 125,6 milhões de pessoas apresentaram algum grau de insegurança alimentar entre os meses de agosto e dezembro de 2020. O que significa dizer que essas pessoas não se alimentaram em quantidade e qualidade ideais, com base em perguntas direcionadas para maiores de idade da Ebia (Escala Brasileira de Insegurança Alimentar). (1)

A pesquisa, coordenada pelo Grupo Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, com sede na Universidade Livre de Berlim, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB), constatou ainda que 32 milhões de pessoas passaram fome no período pesquisado. 

Vale ressaltar que esse período, entre agosto e dezembro de 2020, em que houve corte de 50% no valor do Auxílio Emergencial (recurso que demandou a pressão de muitos agentes sociais, como centrais sindicais, sindicatos, movimentos sociais entre outras organizações para que fosse implementado), não refletiu a suspensão do benefício, em janeiro deste ano, o que tornou a realidade ainda mais dura e com mais fome. 

Desde a ruptura institucional de 2016, sabíamos que o que se avizinhava era o interesse em precarizar o trabalho e retirar direitos da classe trabalhadora. Não por acaso, o impeachment recebeu apoio, inclusive financeiro em campanhas publicitárias, de entidades patronais conservadoras, que incentivaram a aprovação de uma nova Lei da Terceirização (PL 4330/04, que na prática aumentou a doença do mercado de trabalho, com a informalidade) e a Reforma Trabalhista. 

Quando a Reforma Trabalhista chegou ao Congresso Nacional, o movimento sindical já denunciava o retrocesso que ocorreria nas relações de trabalho e, portanto, perdas significativas aos trabalhadores e trabalhadoras bem como o empobrecimento sistemático da sociedade.

 

Evidentemente que tínhamos a dimensão que a tal reforma não criaria empregos e nem ao menos impulsionaria o mercado de trabalho, ao contrário, as mudanças na lei, propostas na Reforma Trabalhista, além de prejudicar e precarizar o trabalhador, ainda fragilizou de forma contundente suas instituições organizativas.

Porém, mesmo com o cenário pessimista que vislumbramos, na ocasião, nada se equipara a deterioração do ambiente social, que teve início em 2017 e que a pandemia tratou de agravá-lo. 

Para se ter uma ideia de como a sociedade brasileira retrocedeu, a partir dessa ruptura com o caminho do bem estar social, dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE, mostram que em 2004 a segurança alimentar era de 65% da população e foi para 70% em 2009 e atingiu 77% em 2013, mas teve queda significativa nos anos de 2017-2018, com 63% da população com segurança alimentar, voltando a patamares inferiores ao observado em 2004. (2)

Mais um indicador na mudança das prioridades políticas, que vinham sendo implementadas até 2015, para as que estão vigorando atualmente é a extinção do Consea, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, no dia 1º de janeiro de 2019, como primeiro ato político do atual governo federal.  

Além da supressão de um direito humano básico, essa condição deteriorada na alimentação dos brasileiros é um complicador para o enfrentamento da pandemia do coronavírus, com impacto direto sobre a saúde e o sistema imunológico, o que torna o indivíduo mais suscetível ao agravamento da Covid-19, aumentando o risco de, em caso de contaminação, vir à óbito. 

Outro fator que causa indignação é verificarmos a população abandonada e faminta ao mesmo tempo em que o Brasil se mantém como um dos maiores produtores de proteína animal do mundo e as safras agrícolas batem recordes de produção todos os anos. Mas o que chegou na mesa foi o pouco ou o nada que deu para comprar com os valores abusivos dos alimentos no ano passado. 

Apesar de os índices inflacionários serem baixos, oficialmente de 4,5% em 2020, por conta da estagnação econômica, não refletem as constantes altas nos preços dos alimentos da cesta básica, como a do óleo de soja com 103,79% e do arroz com 76,01%. Outros itens importantes na cesta das famílias também subiram expressivamente, entre eles, o leite longa-vida (26,93%), frutas (25,40%), carnes (17,97%),  batata-inglesa (67,27%) e tomate (52,76%).

Diante dessa tragédia brasileira, de fome em meio a pandemia, que tem interrompido a vida de milhares de pessoas todos os dias, centenas de iniciativas foram criadas, pelo segundo ano consecutivo, para arrecadar alimentos e distribuir à população que está abandonada e faminta. Organizações sociais e políticas e até mesmo governamentais promovem campanhas de solidariedade para levar comida aos que mais precisam e ajudá-los à resistir a esse período tão cruel da nossa história. Essas ações nos tiram da paralisia diante da morte e provam que ainda há esperança.   

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(1). Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – A Ebia foi criada a partir de um estudo realizado pela Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, que teve o objetivo de classificar graus de segurança e insegurança alimentar e seus efeitos sociais e psicológicos sobre indivíduos que, em algum momento da vida, vivenciaram a fome.  

Em sua primeira etapa, os estudiosos estadunidenses elaboraram um questionário com 18 perguntas e o aplicaram em 32 mulheres que sabidamente haviam tido alguma dificuldade em se alimentar e, por meio da análise das respostas, assim classificar os níveis de insegurança alimentar no âmbito individual e coletivo (familiar). 

“Fome é quando eu não consigo dormir porque meu estômago dói”, na percepção individual e no âmbito familiar “…tenta mandar seus filhos para brincar na casa de algum amiguinho, na hora do almoço, para que comam alguma coisa”, foram algumas das respostas ao questionário.

Com isso, os pesquisadores elencaram quatro níveis: Segurança Alimentar, Insegurança Alimentar Leve (em nível domiciliar), Insegurança Alimentar Moderada (refere-se aos indivíduos adultos da família) e Insegurança Alimentar Grave (quando as crianças da família são afetadas pela fome). 

Essa Escala foi adaptada à realidade brasileira, num esforço que envolveu cinco instituições de pesquisa no Brasil (UNICAMP, UnB, UFPB, INPA e UFMT) e começou a ser utilizada a partir de 2004, na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. 

Fonte: ESTUDO TÉCNICO N.o 01/2014, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. SECRETARIA de  AVALIAÇÃO e GESTÃO da INFORMAÇÃO (SAGI) – Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – EBIA: análise psicométrica de uma dimensão da Segurança Alimentar e Nutricional.

(2). É importante lembrar que o enfrentamento da fome no Brasil passa pelo reconhecimento de sua existência e tem ênfase na política pública que criou o Programa Fome Zero, em janeiro de 2003, como a primeira ação efetiva do governo recém empossado, além de recriar o Consea, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. 

Dentro do Programa, o Bolsa Família, considerado o maior programa de transferência de renda, atingiu 14 milhões de famílias beneficiadas, em 2014, com reconhecimento internacional, principalmente por conta da exigência de manter as crianças na escola, com mínimo de freqüência e a atualização obrigatória na vacinação e acompanhamento de saúde dessas crianças. 

Desde então, os resultados do Brasil no combate à fome, por conta dessas ações efetivas, podem ser comparados entre as Pnads de 2004 e 2009, com aumento da Segurança Alimentar e a queda na Insegurança Alimentar Grave, passando a primeira de 65% para 70% da população e a diminuição de 7% para 5% da Insegurança Alimentar Grave.

Fontes: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. 09/12/2014. Programa Bolsa Família. Site oficial: mds.gov.br e

Biblioteca do IBGE – Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Diretoria de Pesquisas Coordenação deTrabalho e Rendimento.

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Segurança Alimentar 2004.

Confira a edição completa da 17ª Carta de Conjuntura do Observatório aqui

 

 

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